Meu pai também adorava jogos e nos ensinou muitos deles: dama, baralho,
taco, futebol e etc. Lembro de muitas vezes, aquele homem rigoroso sentado no
chão, em cima do tapete explicando as regras do buraco. Para ele tudo na vida tinha
regras, como os jogos! Seu pensamento processual assumia premissas para as
coisas mais básicas. Triste DNA eu herdei, hahah. Para tudo preciso dos
detalhes, o que as vezes me torna “cricri” para levar o dia a dia. Estou
tentando mudar. Juro que tento.
Minha avó paterna era a alegria em pessoa e o obrigava a nos levar para
a praia. Você pode imaginar 6 filhos e mais 2 ou 3 primos na praia?! Pois
é....felizmente minha avó podia, hahah, e o fazia realizar o sonho. Que
infância alegre nós tivemos. Obrigada pai. Obrigada vó.
Mais tarde ele se tornou sócio de um clube de campo lindo que ficava em
Itapecerica da Serra (o antigo Delfim Verde que hoje é um condomínio fechado) e este se tornou o destino
subsequente quando não mais aguentávamos o primeiro.
Muitos piqueniques fizemos
e ainda ali minha mãe era a chefe de gastronomia para o batalhão de filhos que
tinha! Que delícia seus pratos e o carinho que ela colocava em nosso cardápio.
A horta que nos atendia era cultivada por meu avô materno que morava conosco
como já contei para vocês antes. Tudo fresco, sem agrotóxico e feito com as mãos
de mãe. Coloco nisso a minha crença de
sermos todos muito saudáveis! Obrigada mãe.
Meu pai não gostava de dirigir e daí minha mãe assumiu a necessidade.
Graças a Deus. Ele não gostava e não sabia, hahah. Coitado. Habilidade é algo
que nasce com a gente. “Ou não” como dizia o Caetano Veloso, hahah.
Ela ia busca-lo na faculdade quando ele perdia o último ônibus em dias
de prova com o carro dos nossos vizinhos queridos (Horácio e Lucia Calado). “Vizinhos
são os parentes mais próximos que temos” dizia minha avó paterna. Ela tinha
razão. Dona Lucia era a tia (emprestada) confeiteira. Quando ía fazer biscoitos com nome de "popô de freira" lá estávamos nós, de joelhos, nos longos bancos ao redor da mesa, com as mãos cheias de farinha...numa aula interminável de comilança.
Minha mãe nos deixava trancados e saía sozinha a meia noite para busca-lo.
Deus sempre a protegeu e permitiu que ela o ajudasse a cumprir mais essa meta,
voltando em segurança.
Preocupado em dar manutenção nos imóveis que alugava meu pai pintava a
casa todo ano antes do natal. Outra habilidade que ele não tinha. Deus do céu:
não forrava os vidros das janelas, não forrava o chão, pisava nas travessas de tinta
e saía distribuindo suas pegadas por todos os cômodos. Quando ele terminava passávamos
mais de um mês, pelo menos, fazendo o trabalho de pente fino para limpar as
rebarbas. Hahah, muito engraçado de lembrar mas as unhas ficavam em miséria com
o tinner. Credo....mas não dava para pagar pintor!
Apesar do mal jeito, com isso ele me ensinou a dar valor no que é dos
outros. O fato da casa ser alugada não tirava dele a responsabilidade por
mantê-la já que usufruímos do teto que alguém tinha construído. Isto foi um
exemplo para mim e um valor que trouxe dentro do coração e repito até hoje.
Mas... para cumprir a promessa feita à minha mãe, ele trabalhou sem parar
e depois dos 30 fez duas faculdades e aprendeu inglês. Esse conhecimento
acadêmico lhe propiciou desenvolver-se profissionalmente e cumprir a promessa
feita à minha mãe quando nasci, mesmo que isso tenha lhe custado tanto.
Ele dizia para meus irmãos e eu, que não bastava ser bom, tinha de ser “o
bom”. Que ele não era só o Nelson, que era o “Nelson Lacerda – o bom”.
Dizia que estudássemos pois a vida exigiria muito de nós, mas que fizéssemos
tudo sempre muito bem feito. Talvez seja daí que o meu padrão de qualidade com
aquilo que faço seja tão alto e que me exija tanto. Essas coisas ficam na
gente...no inconsciente: “Faça de novo, ainda não está bom, mais uma vez, e de novo! Agora sim, ficou
ótimo! Chegou lá”. Palavras de incentivo que nos faziam vigiar para que ninguém
pudesse falar de nossas entregas. Até hoje fico repetindo, repetindo, checando,
checando...Esta foi uma lição que poderia ter tido um ponto. Tal qual ele,
sempre sofri pela excelência. Não precisa ser perfeito. Isso é para os deuses.
Mas ele não sabia fazer de outro jeito...e sofreu por isto. Que pena.
Algumas vezes desempregado, assumiu dois empregos temporários, um de
cada lado da cidade. Foi uma fase difícil e ele tinha muitas bocas para
alimentar. Minha mãe contribuía com economia e com as atividades autônomas que
conseguia para manter as despesas mais básicas. Nessa época pouco vi meu pai.
Quando ele saía estávamos dormindo e quando chegava também.
Coragem e persistência, essas também eram características da sua
personalidade e ele nos mostrou como se faz. Sem medo. Tentando de novo. Até
dar certo. Como os grandes cientistas e musicado pelo Raul Seixas(Tente outra
vez). Pela tentativa – erros e acertos. Mais acertos que erros quando ficamos
bons, como ele provava.
Quando fiz 9 anos ele me prometeu uma boneca, que na época era
demasiadamente cara: a Mãezinha da Estrela. Promessa era dívida. Aos 13 anos,
quando eu já não ligava pra isso, ele chegou em casa com a caixa enorme da
boneca debaixo do braço e sem dizer uma palavra, entregou pra mim não a boneca
propriamente, mas o sentimento agradecido da confiança que tinha tido nele,
enquanto ele providenciava o recurso para me atender.
Ensinou-me com isso que devemos confiar uns nos outros. As dificuldades
da vida as vezes não nos permitem atender a tudo imediatamente, seja com tempo,
atenção ou dinheiro. Por isso a confiança existe. É com ela que nos sustentamos
até que aquilo que desejamos aconteça. Confie em Deus e nas pessoas que estão
ao seu lado nos momentos difíceis.
Eu não brinquei com a boneca mas minha filha não só brincou como ainda
a tem, numa das prateleiras do seu quarto. Está lá como prova de que o esforço
teve proveito, mesmo que não imediato. Assim é a vida.
Quem convive comigo sabe da admiração que eu tinha pelo meu pai. Meu
conselheiro e amigo, mesmo com todos os seus preconceitos, dentre todos, era eu
que tinha mais afinidades com ele, tanto na carreira que dei continuidade no
futuro, quanto no temperamento ansioso e nervoso que ficou marcado em nossa
personalidade.
A vida foi passando e a promessa sendo cumprida. Todos nós fomos estudando
e ele deu à minha mãe a certeza de que nós teríamos toda a oportunidade
que os pais dela não puderam lhe garantir. Ela foi tendo certeza de que ela fez
uma boa escolha quando optou por ele como companheiro da vida! Orgulho mútuo.
Quando me formei no ginásio, dei à ele a minha primeira demonstração de agradecimento: coloquei um vestido..
e vermelho! Embora eu não gostasse desse tipo de roupa, era o momento dele: me
levar para receber o diploma! Que satisfação! Não custa nada fazer um gosto
para os pais não é?!
Com a situação um pouco melhor e uma família deste tamanho o carro era uma kombi. Viagens inesquecíveis principalmente para passar o natal com nossos primos mineiros e minha avó. Minha mãe também nos levava ao clube. Levava seus filhos e os dos vizinhos para o antigo Clube da prefeitura em Santo Amaro. Minha mãe não regulava muito bem, eu acho! Levava um monte de crianças na kombi, sem sinto de segurança, sem velocidade mínima de 50km/hora(viu Haddad?!)...e nunca aconteceu nada. Minha mãe apesar de ter o pé pesado era muito boa motorista!
Mais tarde, meu pai comprou um Ford Corcel GT (zero) pra minha mãe, mas depois
o vendeu para comprar algo muito mais importante. Eu tinha então 15 anos. Meu
pai nos deu um sobrado de 4 quartos e a condição de levar para lá apenas as
roupas, pois todo o resto foi comprado novo. A primeira casa própria.
Prestações com a caixa econômica, mas nossa. Nunca vi minha mãe mais feliz!
Poder arrumar a casa ao gosto dela, escolher as cortinas, os lustres, os
móveis....era a realização que aquela velha mala debaixo dos braços em 1959
nunca faria supor. Ela que nunca tinha tido uma casa própria quando solteira,
realizava agora o sonho que toda classe média cultiva. Depois compraram outros imóveis e hoje isto permite à minha mãe uma renda extra e pouca preocupação com o sustento.
Daí eu me formei no antigo Colegial Técnico - Secretariado e de novo ele se empolou de orgulho ao me entregar o canudo! Era a escritura do alicerce que me possibilitaria qualquer coisa. Meu pai me entregava a certificação de mais um nível de conhecimento.
Quando entrei na faculdade então...nossa. Entrar na faculdade naquela
época era muito rigoroso e mesmo em faculdades particulares os critérios de
aprovação eram bem difíceis. Ele estava mais feliz que eu mesma, que naquela
época estudava mas sem ter entendimento do quanto isto seria importante mais
tarde. Interrompi minha formação que só muitos anos mais tarde pude concluir, quando ele já não estava pra me segurar a mão!
Meus pais venceram as dificuldades sem perder a esperança. Tivemos pais
atentos à nossa educação, ao nosso sustento, mas principalmente aos valores que
importam na vida. Nunca passamos fome ou necessidade e estudamos todos em bons
colégios. Sempre houve um teto sobre as nossas cabeças (alugada ou própria),
roupas novas no natal e uma viagem pra ter o que contar das férias. Fizemos
bons amigos, e aqueles que não eram tão bons, foram sendo retirados do nosso
convívio. Hoje os entendo. Obrigada mais uma vez.
Casei-me no verão de 1988 e ali sim, com o
peito estufado senti que ele se realizava, ao entregar-me à quem eu tinha
escolhido por amor e entendendo que a missão dele estava cumprida através da
criação de uma nova família: a sua descendência.
Quando minha filha nasceu, vi meu pai transformar-se então definitivamente.
Era sua primeira neta.
Muito sério e rigoroso com nossa educação, deu à ela todo o carinho que
por vezes ele continha com os próprios filhos, por acreditar talvez, que isto
lhe tiraria o respeito que cultivávamos. Este foi um dos grandes enganos dele.
Poderia ter sido mais leve na nossa relação sem perder a referência. Que pena.
Com minha filha tudo podia e acredito sinceramente que as escolhas dela
pela biologia e pelo meio ambiente tenham nascido das histórias infindáveis que
ele contava para ela, colocando nos trens da marginal pinheiros todos os
animais que ela tanto ama, enquanto a fazia dormir.
O segundo neto chegou
quando ela tinha 3 anos. Meu pai ensinou meu filho a fazer xixi na formiga.
Quem diria! Quando meus irmãos e eu éramos pequenos isto estava fora de
cogitação...mas meu filho podia, desde que parasse de chorar e se acalmasse! Deus
do céu quanto escândalo ele fazia. Mas o convite para afogar formigas era
infalível. Calava na hora.
Meus filhos puderam usufruir do seu carinho por alguns anos. Eram seus dois netos mais velhos.
Conheceu ainda minha sobrinha Vanessa e Luiz Fernando, à quem também repetiu a mesma doação amorosa. Estes foram os netos que ele
conheceu e mais uma vez senti grande alegria de ter podido proporcionar mais
esta satisfação à ele.
Obrigada pai, pelo avô que você foi também!
Quando meu pai faleceu minha filha tinha 6 e meu filho 3 anos. Eles
lembram dele e o guardam com carinho no coração...nas conversas com os primos
dizem: “O vô Nelsinho....”. Os outros dois netos (Fernanda e Daniel) o conhecem daquilo que nós
contamos mas trazem nas veias o sangue bom da família linda que ele criou.
O Nelson Lacerda - o bom, virou o “Vô Nelsinho”. Muito melhor!
Olha aí pai parte dos seus netos crescidos e os seus bisnetos! Não são lindos?!
Vanessa, Arthur, Daniel e Juliana
Fernanda
Maluzinha(filha da sua neta Vanessa) e Kauã(filho do Fabricio, seu neto emprestado)
Meu pai tinha formação
católica e frequentou a vida toda, as missas, no bairro onde morávamos. Quando
mais velho, com receio de perder a irmã mais nova, tão querida (Tia Maria Eliza
quanta saudade) para o câncer no seio, foi até Uberaba falar com Chico Xavier.
Desesperado queria saber se havia algo que pudesse salvá-la.
Chico Xavier lhe
disse: “Não se preocupe com sua irmã. Ela é um ser evoluído e está em sua
última encarnação. A doença somente a está purificando para a passagem
definitiva. Cuide você da sua saúde!”. Meu pai não sabia mas tinha úlcera no
estômago(que numa certa madrugada estuporou e ele quase morreu) e uma diabetes que lutou o resto da vida para controlar. Quando a irmã
faleceu, aproximou-se do espiritismo(Kardec) para buscar consolo à sua dor.
Dizia acreditar na doutrina e nas grandes alamedas com árvores, como descritos
no livro “Nosso Lar”. Essa era a representação do céu para ele. Será?!
Ele faleceu antes de completar 61 anos, de um infarto, 2 anos depois de aposentar-se,
no dia 1ª de novembro e foi sepultado no dia 02, finados. Reservado e
acreditando ter poucos amigos morreu sem entender o quanto era querido e tendo uma multidão em volta dele...logo ele que fugia das grandes aglomerações.
Foram ao seu velório amigos do mundo corporativo que ele não via há
anos. Foram lá prestar sua homenagem ao profissional exemplar que ele tinha
sido. Lindo isso. No trabalho raramente criamos vínculos de respeito, como os
que ouvi nas palavras daqueles que se preocuparam em comparecer para dar adeus.
Nossos amigos da adolescência e seus respectivos pais, familiares, vizinhos...
um mundo de gente que ele tinha ajudado tanto financeiramente, como conselheiro
ou apenas com o exemplo de ser humano que era.
O cemitério onde comprou os jazigos não tem sepulturas e aquele jardim
verde com as alamedas e tantas árvores ao fundo, naquele dia de sol, me fizeram acreditar que ele
estava encontrando a sua representação de céu, ali mesmo. O cemitério estava
lotado por causa do dia de finados, mas também por causa dele! Obrigada à todos
pela homenagem e pelos abraços de conforto! Isso faz muita diferença quando
perdemos alguém que amamos! Tenho comigo ainda a carta que um amigo escreveu por não poder estar conosco no sepultamento. Páginas de linhas escritas a mão, palpáveis, colocadas no correio, com a caligrafia pessoal e não de uma fonte no computador. Obrigada Milton!
Gostaria de me despedir da vida assim: com o respeito e carinho que
percebi das pessoas que estiveram conosco.
Dois anos depois
de sua morte sonhei com ele em três noites seguidas. Ele dizia para eu ir ver o
cisto que tinha no meu seio esquerdo. Que fosse ao médico. Dado a insistência dos
sonhos fui ver. No exame clinico o médico nada encontrou, mas pediu o exame de
imagem. Ao abrir o resultado encontrou lá, bem pequeno, o que meu pai alertava.
De alguma forma de onde estava continuava cuidando de mim. Felizmente, a
antecedência com que me tratei me poupou de algo mais grave. Meu médico, depois do tratamento e do acompanhamento constante, pediu pra dizer ao meu pai quando o encontrasse novamente nos sonhos, que sonhasse com ele também, em tempo dele se cuidar..hahah.
Tenho neste momento os olhos marejados pelas lembranças que revivi escrevendo sobre ele...saudades...mas
em nenhum momento, tristeza. Tornei-me uma pessoa feliz, amiga, profissional e
ética graças as influências positivas que ele e minha mãe me proporcionaram.
Criei e eduquei meus filhos, todos formados, com apoio do meu marido e
com base nos mesmos princípios que recebi! A descendência dele, em todos os
aspectos, principalmente de valores, está preservada. A promessa feita por ele
à minha mãe, continua sendo cumprida através de nós, aos seus netos que o garantirão para toda a árvore! Tudo certo
mãe!
Essa é a minha herança mais preciosa! Com ela superei as dificuldades
da vida e me preservo confiante. Tudo
deu e dará certo! Otimismo! Com minha família nada pode me abalar. Estou
protegida pelo amor que recebi de meus pais, irmãos, marido e filhos. É como um
escudo. Nada me abaterá! Coragem é o que tenho para recomeçar sempre que
preciso, como ele fez tantas vezes!
Na minha fé (pouco estruturada em dogmas específicos ou definitivos),
acredito no reencontro futuro em algum lugar (ou aqui mesmo através das novas
encarnações), pois Deus não coloca em nossas vidas tanto amor sem que tenhamos
condição de entregar, retribuir ou reviver. Meu Deus é justo e misericordioso,
basta manter o elo vivo através das lembranças. Estaremos sempre conectados, juntos!
O tempo é só um espaço entre dois momentos.
Neste dia dos pais dedico à ele a gratidão pelo que sou, minha emoção e tudo o que ainda hei de realizar.
Até breve pai!